Olá, meus caros.
Vou postar agora minha opinião sobre um
tema muito polêmico e sensível: cotas para negros em concursos públicos.
Como foi noticiado pela imprensa (não tão
amplamente quanto deveria), a Presidência da República propôs Projeto de Lei
(PL nº 6.378/13), que "Reserva aos negros vinte por cento das vagas oferecidas
nos concursos públicos para provimento
de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração
pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas
públicas e das sociedades de economia mista controladas
pela União".
Como se vê, o PL terá, se aprovado for,
aplicação apenas no âmbito do Poder Executivo Federal, não se aplicando a
Estados, DF, Municípios, nem aos demais poderes da União.
Obviamente, é preciso reconhecer que se
trata de projeto com fins eleitoreiros. Se não, por que, só após 10 anos de
governo do PT (em que se criou, com status de Ministério, a Secretaria Especial
de Políticas de Igualdade Racial), propor tal projeto, logo agora que começa a
se desenhar o quadro da disputa eleitoral de 2014? E, pior ainda, por que
enviar o PL em regime de urgência, em que Câmara e Senado dispõem de apenas 45
dias, cada um, para discutir e votar a proposição?
Contudo, apesar de reconhecer os fins
eleitoreiros do PL, é preciso reconhecer que ele suscita uma discussão
importante e cujos argumentos devem ser enfrentados com franqueza e honestidade
intelectual.
Primeiramente, ressalte-se que a
Constituição só prevê cotas em concursos públicos para uma categoria de pessoas
- os deficientes (art. 37, VII). Isso, todavia, não significa, por si só, que
qualquer outra cota seja vedada.
Também vale recordar que, no julgamento da
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 186, o Plenário do
Supremo Tribunal Federal (STF) julgou constitucional - por unanimidade - a
adoção de políticas de cotas raciais em universidades públicas brasileiras.
Tudo isso indica que a discussão é um
pouco mais complexa do que fazem crer os que a querem transformar numa disputa
entre a "elite branca concurseira" e os "negros ativistas de
ONGs".
Qualquer política de cotas (uma espécie de
ação afirmativa) transita na zona gris que gravita em torno de dois aspectos do
princípio da igualdade: a igualdade formal (perante a lei) e a material (na
lei). Assim, se se privilegia a igualdade formal, em que todos devem ser
tratados igualmente pelo Estado e pelos semelhantes, tende-se a invalidar
políticas de cotas raciais. Mas, se o foco está na igualdade material (a
obrigação do legislador de reduzir desigualdades já existentes), há uma
tendência a se defender a política de cotas, inclusive a racial.
Entretanto, no caso específico de cotas
para concursos públicos, há um ingrediente complicador: o princípio
constitucional da eficiência (art. 37, caput).
Segundo esse preceito, o usuário dos serviços públicos faz jus à prestação mais
eficiente possível. Indissociavelmente ligada a essa ideia está a de que a
seleção para cargos e empregos públicos efetivos seja feita por concurso
público, de provas ou provas e títulos. Fixar cotas que privilegiam o aspecto
de reparação em detrimento da seleção do melhor candidato pode, assim, ser
considerado um desrespeito ao princípio da eficiência. Imagine-se, por exemplo,
um paciente (negro, branco, índio, asiático, pardo, etc.), numa mesa de
cirurgia, prestes a ser operado por um cirurgião que não é o mais hábil nem
preparado, mas que foi escolhido pela cor da pele (qualquer que seja). Por que
aquele paciente tem que suportar o ônus da (devida) reparação social, em vez de
ser tratado pelo médico mais preparado?
Esse é o motivo pelo qual sou favorável às
cotas para o concurso do Itamaraty, em que o cargo tem natureza de
representatividade (não se pode ter um corpo de embaixadores formado apenas de
brancos dos olhos azuis). Mas estender essa lógica a concursos de caráter
estritamente técnico, como para os cargos de médico, controlador de voo, entre
outros, é problemático.
Outro ponto que merece reflexão diz
respeito à proporcionalidade da medida (quanto aos aspectos de adequação e
necessidade).
Dados do IBGE dão conta de que os negros e
pardos no serviço público já equivalem a 45% das vagas - mas o PL só lhes
reserva 20%. Porém, esse dado não esgota a discussão, por dois motivos: em
primeiro lugar, o PL assegura aos negros e pardos disputar vagas nas cotas ou
na ampla concorrência, de acordo com a nota que lhes for atribuída (art. 3º).
Não haveria, em tese, limitação apenas aos 20%, se houver mais negros
preparados a ponto de concorrer nas vagas amplas. Além disso, o percentual de
45% apontado pelo IBGE refere-se não apenas a concursados, mas também a
terceirizados (que, em regra, exercem funções mais operacionais e com
remuneração menor) e a cargos comissionados.
É inegável que, nos cargos de topo, há um
nítido déficit de pessoas negras e pardas. No curso de formação para o cargo de
Consultor Legislativo do Senado Federal, o nível mais alto da carreira da Casa,
provido por concurso de provas e títulos, a homogeneidade da sala de aula
assustava; 10 homens brancos assistiam à aula; nenhuma mulher, nenhum negro. No
entanto, não é com a criação de cotas que se vai resolver esse problema. Aliás,
em concursos como esse, com poucas vagas (uma para cada área), o critério do PL
não seria aplicável, pois, de acordo com o art. 1º, § 1º, da proposição, a
reserva de vagas só será aplicável se o número de vagas for igual ou superior a
três.
Não é verdade que a política de cotas, em
geral, seria uma solução paliativa, quando o correto seria corrigir distorções
durante a formação. Ora, a correção de desigualdades durante a formação – única
medida capaz de realmente resolver o problema – só produziria efeitos para
daqui a duas ou três gerações. E os negros que já são discriminados hoje?
Também é falacioso o argumento de que o correto seria a criação de cotas
sociais. Como advertiu o Ministro Gilmar Mendes no julgamento da ADPF nº 186,
uma coisa não exclui a outra: pode haver cotas sociais e raciais.
Da mesma maneira, não se sustenta o
argumento de que a instituição de cotas significaria o reconhecimento da
incompetência de negros e pardos. A reserva de vagas tem caráter reparatório,
não de reconhecimento de “incompetência” – justamente por isso, segundo o PL,
valerão por dez anos.
A questão é outra: retorna ao princípio da
eficiência. O momento para se fazer a necessária e – essa sim – urgente correção
das desigualdades entre negros e brancos é durante a formação, inclusive
universitária. Cotas raciais, quando aplicadas na seleção para cargos públicos
mediante concurso, seriam violação ao princípio da eficiência. Quanto às cotas
para deficientes, trata-se de decisão do constituinte originário,
encontrando-se juridicamente fora da possibilidade de discussão (embora
pouquíssimas pessoas a questionem).
Outro ponto que enfraquece o PL, sob o
prisma jurídico, é o fato de que ele viola, em tese, o princípio da
proporcionalidade. Não é o meio adequado para resolver a desigualdade, uma vez
que a maior discrepância entre negros e brancos no serviço público, segundo o
IBGE, é nos cargos em comissão do Executivo Federal (DAS), que são de livre
nomeação e exoneração, e não providos por concurso. Dessa forma, a medida
legislativa simplesmente não resolveria o lado mais perverso da discriminação:
o fato de que o mesmo Governo que propôs o PL escolheu negros para ocuparem
apenas 2% das vagas em cargos comissionados do primeiro, segundo ou terceiro
escalões.
Há outro ponto: a reserva de vagas, que
inevitavelmente restringe o acesso de pessoas brancas, não é o meio menos
gravoso para se alcançar a finalidade da redução das desigualdades. Viola,
portanto, o princípio da proporcionalidade, sob o aspecto da necessidade. Vale
lembrar, por oportuno, que a ideia de reserva de vagas para negros já constava
do PL que buscava instituir o chamado “Estatuto da Igualdade Racial”, rejeitado
pelo Congresso Nacional.
Logicamente, é muito fácil afirmar isso
tudo sendo branco e concursado de um cargo elevado. Mas é preciso ter
honestidade para reconhecer que o PL é ruim e inconstitucional – não pelos fins
eleitoreiros mal disfarçados, e sim porque desrespeita os princípios da
eficiência e da proporcionalidade.
Como professor de graduação e de cursos
preparatórios para concursos, sou forçado a reconhecer a existência de uma
discrepância inaceitável no acesso de negros e pardos à educação e aos cargos
públicos. Mas não espero não ter que me deparar com salas de aula e listas de
aprovados divididas pela cor da pele, ao invés de serem baseadas na melhor
preparação. Quero viver para ver o dia em que, na sala de aula do curso de
formação para qualquer concurso, tenhamos uma pluralidade de crenças, cores e
raças, mas porque todos têm iguais chances de se preparar, e não porque foram “tabelados”
pelo Estado de acordo com a etnia.
PS: Essas e outras importantes discussões devem ser acompanhadas de perto por quem vai fazer o concurso de Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados. O IMP lançou um curso preparatório para esse concurso, mais especificamente para a área 1 (Direito Constitucional, Administrativo, Eleitoral e Municipal). A turma será coordenada por mim, e terá a opção de matrícula nas disciplinas básicas (aulas de segunda a quinta) e/ou específicas (aulas às sextas, sábados e domingos). As matérias específicas serão Direito Constitucional I e Processo Legislativo (ministradas por mim), Direito Constitucional II e Regimento Interno (ministradas pelo Prof. Gabriel Dezen), Direito Eleitoral (ministrada pelo prof. Roberto Carlos Pontes, consultor da Câmara), Direito Municipal (ministrada pelo prof. Márcio Silva Fernandes, consultor da Câmara), Direito Administrativo (ministrada pelo prof. Gustavo Scatolino, Procurador da Fazenda Nacional) e Discursiva I a IV.
Para quem tiver interesse, o link é este aqui.