segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Poder Constituinte Originário

Meus Caros,
espero que tenham gostado do último post, sobre Hermenêutica Constitucional.
Na esteira de nossos estudos sobre Teoria da Constituição, posto agora material teórico sobre o Poder Constituinte Originário.
Bons estudos e perseverança!


PODER CONSTITUINTE ORIGINÁRIO

O poder constituinte originário pode ser definido como o poder que cria uma nova Constituição, o poder que “constitui a Constituição”. É o poder que põe em vigor uma nova Constituição, seja de maneira propriamente originária (primeira Constituição de um país), seja derrubando o ordenamento constitucional anterior para instituir uma nova Constituição.
Tal poder é de manifestação episódica, espasmódica, em momentos de revolução ou ruptura institucional. O poder Constituinte Originário é o verdadeiro “big-bang” jurídico: antes dele, o nada, o caos; depois dele, o cosmos, a ordem jurídica.

1. Titularidade

De acordo com a doutrina, o titular do poder constituinte originário é o povo (e não da nação, como na teoria de Siyès). Como afirma a nossa Constituição, no parágrafo único do art. 1º: “Todo o poder emana do povo (...)”.
“Povo”, porém, é um conceito jurídico complexo, que abrange não só os atuais viventes, mas também as tradições e valores das gerações passadas e a preocupação com as gerações futuras (é o conjunto dos nacionais, vivos, mortos ou por nascer).
Interessante notar que a titularidade do poder originário é do povo, mas nem sempre será por ele exercido. Assim, nas constituições promulgadas, o povo é o titular do poder constituinte originário, e o exerce, de forma indireta, por meio de representantes eleitos em Assembleia Constituinte. Porém, nas constituições outorgadas, o poder será exercido por um ditador, que impõe a Constituição. Todavia, presume-se que o povo aceita passivamente esse domínio, de forma que continua sendo o titular do poder constituinte originário, ainda que não o exerça. O ditador seria apenas um usurpador do exercício de tal poder.

2. Características do poder constituinte originário

2.1. Inicial

Diz-se que o poder constituinte originário é inicial porque institui um novo ordenamento jurídico, uma nova Constituição, derrubando o ordenamento anterior. Em outras palavras: o poder originário cria um novo ordenamento jurídico a partir do zero. Derruba todas as normas jurídicas que eventualmente existam antes dele, e recria um novo sistema jurídico.
Quando se cria uma nova Constituição (manifestação do poder constituinte originário), a nova norma fundamental revoga (=derruba) a Constituição anterior. Como esta (a Constituição) é a base do ordenamento jurídico, na verdade a nova Lei Fundamental termina por retirar a validade e vigência de todo o ordenamento jurídico anterior a ela.
Justamente por isso, não se pode invocar contra o poder constituinte originário direito adquirido.
Na verdade, como veremos, algumas normas do ordenamento anterior são aproveitadas, por meio do fenômeno da recepção.

2.2. Autônomo

O poder constituinte originário define livremente o conteúdo das normas da nova da Constituição; trata-se de uma característica ligada ao aspecto material, de conteúdo – o constituinte originário pode dispor livremente sobre o CONTEÚDO da nova Constituição.
Assim, por exemplo, uma nova Constituição poderia prever a instituição da pena de morte para todos os crimes, estabelecer a forma de governo monárquica etc.

2.3. Incondicionado

O poder originário é qualificado como incondicionado porque não se submete às normas e condições do ordenamento anterior; trata-se de uma característica ligada à forma – o constituinte originário pode aprovar a nova Constituição da FORMA que quiser.
Por exemplo: a nossa atual Constituição exige o quórum de 3/5 para a aprovação de qualquer modificação (art. 60, § 2º). Entretanto, se houvesse uma revolução no Brasil, e o povo resolvesse promulgar uma nova Constituição, poderia escolher aprová-la por maioria absoluta, ou qualquer outro quórum, pois não está submetido às formalidades (=procedimentos) previstos na Constituição anterior.

2.4. Juridicamente ilimitado

Até por uma questão de lógica jurídica, o poder constituinte originário é considerado ilimitado, em termos jurídicos. Veja-se: o poder originário cria a norma jurídica de mais alta hierarquia (a Constituição); logo, não há nenhuma norma jurídica à qual ele deva obediência. Assim, em termos estritamente jurídicos, o poder constituinte originário pode tudo, é absolutamente ilimitado.
Por exemplo: se a Constituição desejar, pode extinguir cargos públicos, desfazer atos jurídicos já praticados, desrespeitar direitos adquiridos. Não há nenhuma norma de direito que proíba o poder constituinte originário de adotar tais providências.
Está claro que o poder constituinte originário pode sofrer limitações de ordem social, histórica, política, mas em termos jurídicos não há qualquer limitação – como atesta a jurisprudência do STF; na célebre frase americana, o poder constituinte originário pode tudo, só não pode transformar o homem em mulher e viceversa.

2.5. Permanente

Parte da doutrina cita também que o Poder Constituinte Originário é PERMANENTE, pois pode manifestar-se a qualquer tempo. O Poder Constituinte Originário pode ser considerado um vulcão: manifesta-se e se mantém inativo, mas permanentemente em possibilidade de voltar a irromper1.

3. Efeitos do poder constituinte originário (consequências da entrada em vigor de uma nova Constituição)

Sempre que entra em vigor uma nova Constituição, suscitam-se algumas questões práticas relevantes, relativas à manutenção ou não das normas do ordenamento anterior.

3.1. Desconstitucionalização

A desconstitucionalização pode ser entendida como a automática manutenção em vigor das disposições da Constituição antiga (naquilo que não conflitassem com a nova Constituição), só que não mais com o status de normas constitucionais, mas como simples leis ordinárias. Dessa maneira, as normas da Constituição anterior que fossem compatíveis com a nova Carta permaneceriam em vigor, só que com força de meras leis (isto é, perdendo a força de norma constitucional, daí o nome de desconstitucionalização).
Tal efeito é rejeitado pela imensa maioria da doutrina brasileira, que a admite apenas quando
expressamente referida pela nova Constituição. Afinal de contas, se foi instituída uma nova Constituição, é porque (presume-se) não se desejam mais as disposições da carta anterior.
Vejamos a explicação extremamente didática oferecida por Juliano Taveira Bernardes:

“[A desconstitucionalização] É o instituto pelo qual normas formalmente constitucionais do regime anterior, embora perdendo o caráter hierarquicamente superior, continuam a vigorar como legislação infraconstitucional sob a égide de uma nova Constituição. Significa a recepção, pela Constituição superveniente, como leis ordinárias, de disposições da Constituição revogada, que lhe sejam compatíveis. Posição admitida, v.g., por Ferreira Filho, Pontes de Miranda e Raul Machado Horta.
José Afonso da Silva, em atualização a seu Aplicabilidade das Normas Constitucionais, hoje entende que a não-reprodução, pela Constituição superveniente, de determinadas normas, não essencialmente constitucionais, significaria que ‘a nova ordem constitucional as quis desqualificar, não apenas como normas, mas também como normas jurídicas vigentes’.
Para Celso Bastos, ‘se o poder constituinte teve êxito em substituir a ordem constitucional anterior é porque colocou em seu lugar uma nova ordem constitucional. Nada da Constituição anterior sobrevive’.
De fato, a substituição de um regime constitucional se dá por completo, não cabendo investigar se suas normas apenas formalmente constitucionais foram ou não mantidas pela nova Constituição. A entrada em vigor da nova ordem constitucional altera totalmente o fundamento de validade do ordenamento jurídico pretérito, revogando por inteiro a Constituição anterior, razão pela qual não se pode enxergar na omissão da Constituição superveniente o desejo de manter parcialmente operantes alguns dos dispositivos da Carta anterior, ainda que não haja incompatibilidade material.
No entanto, não existem empecilhos a que o Constituinte acate a tese da desconstitucionalização, desde que o faça por intermédio de dispositivo expresso, para que não deixe dúvidas quanto ao desejo de assim proceder. Nesse sentido: Michel Temer, valendo-se de lição de Celso Ribeiro Bastos, e Luís Roberto Barroso”2.

3.2. Repristinação

Em linguagem comum, poderíamos afirmar que a repristinação é a “ressurreição” de uma norma jurídica que já estava revogada. Em termos técnicos, afirmamos que é a volta do vigor da lei revogada pela revogação da lei revogadora.
Hipoteticamente: a Lei A foi revogada pela Lei B; a repristinação ocorreria se a revogação da Lei B por uma Lei C fizesse com que a Lei A retomasse o vigor, “renascesse”.
A repristinação é aceita no Direito brasileiro, desde que seja expressa; é dizer, não se aceita a repristinação tácita. Só se a Lei C expressamente previr a repristinação da Lei A é que esta
voltará a vigorar. Nesse sentido, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (antigamente chamada de “Lei de Introdução ao Código Civil” – DL 4.657/42) prevê, no art. 2º, §3º, que “Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência”.
O mesmo fenômeno pode ocorrer com uma Constituição. Se a CF/88 quisesse, poderia ter ressuscitado (repristinado) dispositivos da Constituição de 1946, por exemplo, mas desde que houvesse previsão expressa nesse sentido. É preciso lembrar com Maria Helena Diniz, que “em qualquer hipótese, porém, a repristinação, quando permitida, só terá efeitos ex nunc”3, isto é, valerá daquele momento em diante, e não de forma retroativa4.

3.3. Recepção

O surgimento de uma nova Constituição revoga a Constituição anterior. Com isso, o antigo ordenamento fica “acéfalo”, e todas as normas infraconstitucionais que o compunham perdem o fundamento de validade (a compatibilidade vertical com a Constituição) e deixam de valer.
Porém, é muito difícil crer que fosse possível, a cada nova Constituição, refazer todo o ordenamento jurídico (elaborar um novo Código Penal, um novo Código Civil etc.). Por isso – por motivos pragmáticos, de ordem prática, ressalta Kelsen – se reconhece o fenômeno da recepção, por meio do qual continuam a valer (são recepcionadas) as normas INFRACONSTITUCIONAIS do ordenamento anterior E que forem compatíveis com a NOVA Constituição.
Na verdade, como bem ressalta Kelsen, não é que as normas continuem a valer, mas sim que elas adquirem um novo fundamento de validade (a nova Constituição)5.
Essa é a lição que se colhe da obra de Juliano Taveira Bernardes:

“Ao substituir a ordem constitucional anterior, o Poder Constituinte originário institui novo fundamento de validade do ordenamento jurídico. Porém, a legislatura ordinária não possui condições de reeditar, de plano, todo o arcabouço normativo infraconstitucional anterior. Nada obstante, nem todo corpo de atos normativos anteriores é contrário aos postulados da nova Constituição. Daí, com fundamento no princípio da continuidade e em razões de segurança jurídica, aceita-se a teoria da recepção do direito positivo anterior, desde que haja compatibilidade material com o mais recente Texto Constituional”6.
Ainda sobre a recepção, é preciso anotar que se cuida de um fenômeno intrinsecamente ligado ao conteúdo: não importa a forma por meio da qual a norma surgiu, mas sim o conteúdo; a forma será adequada à nova Constituição.
Assim, por exemplo, o Código Penal foi instituído por um Decreto-Lei, instrumento normativo que não mais existe; porém, o que for compatível com a CF/88 é recepcionado com força de lei ordinária.
Da mesma forma, o Código Tributário Nacional foi aprovado – antes da CF de 1988 – como lei ordinária; como a nova Constituição passou a exigir lei COMPLEMENTAR para regulamentar a matéria, o CTN foi recepcionado, mas com força de lei COMPLEMENTAR (tanto que só pode ser alterado por outra lei complementar7).
Assim, pode-se dizer que “é irrelevante à nova ordem constitucional qual tenha sido o processo de formação dos atos normativos anteriores, importando apenas que seu conteúdo esteja em conformidade (...). A compatibilidade necessária à recepção atém-se apenas ao aspecto material, não sendo importante a adequação formal do preceito recepcionado8.
Resta, porém, ainda uma pergunta: E o que acontece com as normas que não são recepcionadas: são inconstitucionais ou são automaticamente revogadas pela nova Constituição?
Trata-se de uma questão polêmica na doutrina, mas o STF tem jurisprudência no sentido de que as normas anteriores não recepcionadas são automaticamente revogadas. O STF não admite, então, a tese da inconstitucionalidade superveniente. Isso, em uma visão sistêmica, tem explicação: para que uma norma seja inconstitucional, é preciso que ela primeiro integre o sistema; as normas não recepcionadas sequer ingressam no novo ordenamento – motivo pelo qual não podem ser consideradas inconstitucionais, mas apenas revogadas. Trata-se, então, de um conflito de normas no tempo, e não de um conflito de hierarquia entre normas.
Esse posicionamento tem relevantes efeitos práticos: entre eles, o de que não cabe Ação Direta de INCONSTITUCIONALIDADE (ADIn – CF, art. 102, I, a) contra lei ou ato normativo anterior à Constituição, pois não haveria inconstitucionalidade, mas mera revogação. No caso, a ação de controle concentrado cabível seria a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental: Lei n. 9.882/1999, art. 4º). Realmente, a “ADPF, fórmula processual subsidiária do controle concentrado de constitucionalidade, é via adequada à impugnação de norma pré-constitucional9.
Confira-se, a título de exemplo, o seguinte julgado da Suprema Corte:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - IMPUGNAÇÃO DE ATO ESTATAL EDITADO ANTERIORMENTE À VIGÊNCIA DA CF/88 - INCONSTITUCIONALIDADE SUPERVENIENTE - INOCORRÊNCIA - HIPÓTESE DE REVOGAÇÃO DO ATO HIERARQUICAMENTE INFERIOR POR AUSÊNCIA DE RECEPÇÃO - IMPOSSIBILIDADE DE INSTAURAÇÃO DO CONTROLE NORMATIVO ABSTRATO - AÇÃO DIRETA NÃO CONHECIDA.
- A AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE NÃO SE REVELA INSTRUMENTO JURIDICAMENTE IDÔNEO AO EXAME DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DE ATOS NORMATIVOS DO PODER PÚBLICO QUE TENHAM SIDO EDITADOS EM MOMENTO ANTERIOR AO DA VIGÊNCIA DA CONSTITUIÇÃO SOB CUJA ÉGIDE FOI INSTAURADO O CONTROLE NORMATIVO ABSTRATO.
- A FISCALIZAÇÃO CONCENTRADA DE CONSTITUCIONALIDADE SUPÕE A NECESSÁRIA EXISTÊNCIA DE UMA RELAÇÃO DE CONTEMPORANEIDADE ENTRE O ATO ESTATAL IMPUGNADO E A CARTA POLÍTICA SOB CUJO DOMÍNIO NORMATIVO VEIO ELE A SER EDITADO. O ENTENDIMENTO DE QUE LEIS PRÉ-CONSTITUCIONAIS NÃO SE PREDISPÕEM, VIGENTE UMA NOVA CONSTITUIÇÃO, À TUTELA JURISDICIONAL DE CONSTITUCIONALIDADE IN ABSTRACTO.
- ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL JÁ CONSAGRADA NO REGIME ANTERIOR (RTJ 95/980 - 95/993 - 99/544) - FOI REAFIRMADO POR ESTA CORTE, EM RECENTES PRONUNCIAMENTOS, NA PERSPECTIVA DA CARTA FEDERAL DE 1988.
- A INCOMPATIBILIDADE VERTICAL SUPERVENIENTE DE ATOS DO PODER PÚBLICO, EM FACE DE UM NOVO ORDENAMENTO CONSTITUCIONAL, TRADUZ HIPÓTESE DE PURA E SIMPLES REVOGAÇÃO DESSAS ESPÉCIES JURÍDICAS, POSTO QUE LHE SÃO HIERARQUICAMENTE INFERIORES.
- O EXAME DA REVOGAÇÃO DE LEIS OU ATOS NORMATIVOS DO PODER PÚBLICO CONSTITUI MATÉRIA ABSOLUTAMENTE ESTRANHA À FUNÇÃO JURÍDICO-PROCESSUAL DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE”10.

Obs. 1: Questões formais NÃO impedem a RECEPÇÃO.
Obs. 2: As leis anteriores e incompatíveis com a nova Constituição não serão inconstitucionais, e sim revogadas (o STF não acata a teoria da inconstitucionalidade superveniente).
Obs. 3: A recepção é um fenômeno automático, não há nenhum ato declarando que as normas foram recepcionadas: isso ocorre de maneira automática, sem previsão expressa, e eventuais dúvidas serão resolvidas pelo Poder Judiciário, especialmente pelo Supremo Tribunal Federal.

4. Incidência imediata

Uma vez promulgada a Constituição, os dispositivos nela contidos aplicam-se de forma imediata, inclusive quanto aos atos jurídicos anteriores (é a chamada retroatividade mínima ou incidência imediata). Por exemplo: a Constituição de 1988 instituiu um “teto” para as remunerações dos servidores públicos (CF, art. 37, XI): a partir de 5 de outubro de 1988, esse teto passou a ser aplicável, mesmo a quem tivesse entrado no serviço público antes da Constituição. É a incidência imediata: a aplicação aos efeitos futuros (daqui para a frente) dos atos já produzidos anteriormente11.
Essa é a regra geral. Porém, se o Constituinte originário quiser – ele pode tudo – poderá determinar inclusive a aplicação de suas normas aos fatos já consumados no passado, desconstituindo-os (retroatividade máxima) ou sua aplicação às prestações vencidas e não pagas na data da promulgação da Carta (retroatividade média). Por exemplo: a Constituição previu que todos os que tivessem sido demitidos do serviço público, durante a ditadura militar, por motivos de perseguição política, retornariam imediatamente à ativa, com direito às promoções a que fariam jus se estivessem em atividade (retroatividade máxima: a CF desfez os efeitos passados dos atos jurídicos); porém, ressalvou que ninguém seria indenizado de forma retroativa (retroatividade mínima = incidência imediata)12.
Da mesma forma, a CF poderia prever que a regra segundo a qual os juros máximos seriam de 12% ao ano (antiga redação do art. 192) aplicar-se-ia mesmo aos contratos firmados anteriormente à sua promulgação (retroatividade mínima), e inclusive quanto às prestações vencidas antes de 1988, mas ainda não pagas (retroatividade média).
A regra geral, porém, é a retroatividade mínima (incidência imediata)13; o desfazimento dos atos praticados anteriormente (retroatividade máxima) ou a aplicação das normas quanto às prestações vencidas anteriormente à Constituição, mas ainda não pagas (retroatividade média) são a exceção, e, embora admissíveis, só serão aplicadas se houver previsão expressa. Como adverte Pedro Lenza:

“O STF vem se posicionando no sentido de que as normas constitucionais, fruto da manifestação do poder constituinte originário, têm, por regra geral, retroatividade mínima, ou seja, aplicam-se a fatos que venham a acontecer após a sua promulgação, referentes a negócios passados.
(...) Portanto, sendo a regra a retroatividade mínima, nada impede que a norma constitucional, já que manifestação do poder constituinte originário ilimitado e incondicionado juridicamente, tenha retroatividade média ou máxima. Contudo, para tanto, deve existir expresso pedido na Constituição”14.

Consulte-se o seguinte precedente do STF:

“Já se firmou a jurisprudência desta Corte no sentido de que os dispositivos constitucionais têm vigência imediata, alcançando os efeitos futuros de fatos passados (retroatividade mínima). Salvo disposição expressa em contrário - e a Constituição pode fazê-lo -, eles não alcançam os fatos consumados no passado nem as prestações anteriormente vencidas e não pagas (retroatividades máxima e média)”15.
Numa tabela:

Retroatividade mínima
Retroatividade média
Retroatividade máxima
A norma constitucional incide imediatamente sobre os efeitos futuros dos atos preexistentes. Incidência imediata, mas daqui para a frente (ex nunc)
A norma constitucional incide sobre os efeitos pendentes dos atos preexistentes. Incidência imediata, inclusive quanto às prestações vencidas anteriormente, mas ainda não pagas.
A norma constitucional desconstitui (=desfaz) atos praticados no passado, antes de sua vigência. A norma se aplica aos fatos passados, de modo retroativo (ex tunc)
Exemplo: servidores admitidos antes da CF/88 terão as remunerações limitadas pelo teto, mas a partir de 5/10/1988.
Exemplo hipotético: os contratos firmados antes de 1988 teriam juros máximos de 12% a.a., mesmo quanto às prestações vencidas antes da CF e ainda não pagas.
Exemplo: os servidores que foram demitidos por motivo de perseguição política, antes de 1988, serão reintegrados, considerando-se nulo desde a época o ato de demissão.
É a regra (não precisa vir expressa)
É a exceção (precisa vir prevista expressamente)
É a exceção (precisa vir prevista expressamente)


1 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet et al. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 130.
2 BERNARDES, Juliano Taveira. Efeitos das Normas Constitucionais no Sistema Normativo Brasileiro. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002, pp. 59-60.
3 Idem, ibidem, p. 40.
4 Existe também outra possibilidade de “ressurreição” de uma lei: quando o STF julga procedente uma ADIn (ação direta de inconstitucionalidade), retira uma lei do ordenamento jurídico. Com isso, volta a valer a lei que tenha sido por ela revogada. Assim, por exemplo: a Lei X revogou a Lei Y, mas depois aquela (Lei X) foi declarada inconstitucional pelo STF, em sede de controle abstrato de constitucionalidade (por meio de ADIn, por exemplo). Nesse caso, em regra, a Lei X será expulsa do ordenamento como se nunca tivesse existido: por isso, a Lei Y voltaria a valer. A esse fenômeno o STF denomina “efeito repristinatório”. Porém, não se trata de uma repristinação propriamente dita, pois: a) a repristinação propriamente dita pressupõe a validade da norma revogadora, o que não é o caso; b) a repristinação propriamente dita ocorre em virtude de lei, não em virtude de decisão judicial; c) a repristinação propriamente dita é um fenômeno no plano da existência da norma, não no plano da sua validade; e d) a repristinação propriamente dita jamais tem efeitos ex tunc, como ocorre, em regra, com a declaração de inconstitucionalidade.
Para fins de concursos, é preciso ter cuidado, principalmente quanto á prova subjetiva. Recomendamos utilizar a expressão “repristinação” apenas para o efeito explicado primeiramente. A esse segundo efeito, verdadeiro resultado da declaração de inconstitucionalidade, é melhor chamar de efeito repristinatório (é como se fosse uma repristinação). Nesse sentido: BERNARDES, Juliano Taveira. Efeitos das Normas Constitucionais no Sistema Normativo Brasileiro. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002, p. 77: “Apesar de correta a conclusão de que a declaração de inconstitucionalidade acarreta a revigoração do direito revogado pela norma impugnada, esse fenômeno não equivale à repristinação, que pressupõe a validade do dispositivo revogador”.
5 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 230.
6 BERNARDES, Juliano Taveira. Op. Cit., p. 35.
7 Aliás, a Súmula Vinculante n. 8 considera inconstitucionais alguns dispositivos de leis ordinárias, justamente, por esse motivo: “São inconstitucionais o parágrafo único do artigo 5º do Decreto-lei 1.569/77 e os artigos 45 e 46 da Lei 8.212/91, que tratam de prescrição e decadência de crédito tributário”.
8 BERNARDES, Juliano Taveira. Op. Cit., p. 36. Interessante transcrever outra observação do autor: “Essa regra, porém, comporta exceção. Se a nova Constituição importou em alteração da regra de distribuição de competência entre os entes da federação, (...) não se pode cogitar da federalização de normas estaduais ou da estadualização de normas municipais. (...) opera-se a recepção somente se proveniente a norma de ente constitucional lotado em esfera superior” (p. 37). Em suma: normas federais podem ser recepcionadas como estaduais ou municipais, mas nunca o contrário. Essa questão específica já foi cobrada em prova do Cespe: Cespe/AGU/Advogado da União/2009.
9 STF, Pleno, ADPF 130/DF, Relator Ministro Ayres Britto, DJe de 05.11.2009.
10 STF, Pleno, ADIn 07-QO/DF, Relator Ministro Celso de Mello, DJ de 04.09.1992.
11 BERNARDES, Juliano Taveira. Op. Cit., p. 64.
12 ADCT, art. 8º: “É concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares, aos que foram abrangidos pelo Decreto Legislativo nº 18, de 15 de dezembro de 1961, e aos atingidos pelo Decreto-Lei nº 864, de 12 de setembro de 1969, asseguradas as promoções, na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividade previstos nas leis e regulamentos vigentes, respeitadas as características e peculiaridades das carreiras dos servidores públicos civis e militares e observados os respectivos regimes jurídicos.
§ 1º - O disposto neste artigo somente gerará efeitos financeiros a partir da promulgação da Constituição, vedada a remuneração de qualquer espécie em caráter retroativo.”.
13 Ressalte-se, porém, que essa retroatividade mínima só é admissível quanto às normas constitucionais originárias: as leis infraconstitucionais e as emendas constitucionais não podem ter retroatividade (nem mesmo a mínima), se forem prejudicar direito adquirido, ato jurídico perfeito ou coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI). Cf. STF, Segunda Turma, RE 388.607-AgR/BA, Relator Ministro Joaquim Barbosa, DJ de 28.04.2006.
14 LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 99.
15 STF, Primeira Turma, RE 140.499/GO, Relator Ministro Moreira Alves, DJ de 09.09.1994.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Hermenêutica constitucional

A Hermenêutica Constitucional é um dos temas mais complexos do Direito Constitucional. Vem, de uns tempos pra cá, sendo muito cobrada em concursos públicos, além de receber muita (e merecida!) atenção nos meios acadêmicos.
Na tentativa de expor alguns conceitos básicos, publicamos agora um material teórico sobre o assunto. Divirtam-se!

HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL

1. ELEMENTOS DA COMUNICAÇÃO

                A comunicação (tarefa de transmitir a alguém uma mensagem) faz-se por meio de alguns elementos: emissor, receptor, mensagem e código são alguns deles. Vejamos:
                Emissor é quem formula e transmite a mensagem. É aquele que fala, escreve etc. Receptor é a quem a mensagem é destinada (o destinatário da mensagem). É aquele que ouve, vê, lê etc. Mensagem é o conteúdo a ser transmitido por meio da comunicação. Código: o ideal é que houvesse uma transmissão direta de pensamentos (mensagens). Como isso é impossível, emissor e receptor comunicam-se por meio de um código preestabelecido: o emissor codifica a mensagem e envia ao receptor, que a decodifica. Podemos citar como exemplos de códigos: língua portuguesa, linguagem de sinais, código Morse etc.
                Toda comunicação (inclusive a normativa) se faz por meio de signos enviados ao receptor por um emissor. Esses signos serão, então, interpretados pelo receptor, de acordo com um determinado código, para que lhes seja atribuído um determinado significado. Temos, então: significante = palavras, sons, imagens (que, em si mesmas, nada dizem); significado = o sentido que o intérprete atribui ao significante, depois de interpretá-lo (ex: cor vermelha no semáforo – significante – corresponde a “pare” – significado). SIGNO = SIGNIFICANTE + SIGNIFICADO.
                Percebe-se, então, que a interpretação é a decodificação feita pelo receptor (intérprete) da mensagem enviada pelo emissor. Pode-se fazer uma analogia entre a interpretação e a tradução (é a sugestão do professor Tércio Sampaio Ferraz Jr.[1]).
                Na interpretação, o foco é a tarefa (nem sempre fácil) do receptor (intérprete) de decodificar (interpretar) a mensagem. \No caso desse texto, teríamos: emissor – sou eu, professor João Trindade, que
emito a mensagem; receptor – é você, leitor; mensagem – é o conteúdo desse livro; código – a língua portuguesa escrita.
                Por outro lado, já no caso da interpretação constitucional: emissor – é o constituinte, originário
ou derivado; receptor – é o intérprete; mensagem – é o conteúdo da norma; código – é a estrutura da Constituição e a língua portuguesa escrita.

2. INTERPRETAÇÃO E HERMENÊUTICA

                Interpretar é atribuir significado a um determinado texto. Os dispositivos constitucionais (texto da Constituição) também necessitam ser interpretados, pois nenhum texto possui significado a priori. É por isso que a moderna doutrina afirma que é o intérprete que constroi a norma.
                Hermenêutica é o ramo da filosofia que estuda como se dá a interpretação. Então, temos que a interpretação é a atividade; a hermenêutica, o estudo de como essa atividade deve ser levada a cabo.

                2.1. Caráter necessário e “aberto” da interpretação jurídica

                As leis e a Constituição são escritas, isto é, compõem-se de signos escritos, que precisam ser decodificados (interpretados). Nesse sentido, todo dispositivo normativo precisa de interpretação; não existe norma que dispense a interpretação. Justamente por isso, a doutrina mais recente critica a expressão latina “in claris cessat interpretatio” (no claro cessa a interpretação), porque até mesmo para se saber que uma regra é clara, é preciso interpretá-la. A interpretação jurídica é, pois, algo imanente ao próprio Direito.
                Bem se vê que há certa margem de subjetividade na tarefa de interpretar. Por isso, reconhece-se a influência das pré-compreensões do intérprete. É claro que a interpretação sobre o que seja “livre iniciativa” varia entre um intérprete liberal e um comunista. Mas não se pode fugir de um limite: o texto
normativo. O que se busca é reduzir, controlar essa margem de subjetividade.
                Outro fator que contribui para essa “margem de dúvida” na interpretação constitucional é o caráter aberto das normas constitucionais. Dessa maneira, tais normas comumente admitem dois ou mais significados possíveis (são signos ambíguos ou equívocos ou plurívocos). Cabe, então, ao intérprete fixar,
com base nos métodos de interpretação constitucional, qual a interpretação que é (mais) adequada.

3. SUJEITOS DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

                Todos os que vivenciam uma Constituição a interpretam. Eis a lição de Peter Häberle, na célebre obra A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição (tradução de Gilmar Mendes)[2]. Assim, a interpretação não é tarefa que caiba unicamente aos poderes públicos, muito menos apenas ao Tribunal Constitucional. Todos nós, quando vivemos em sociedade, estamos contribuindo com nossos valores e experiências, para que a própria Constituição se adapte ao “mundo real”[3].
                Por isso que se diz que a Constituição é um ser vivo, em constante mutação. Adapta-se constantemente às mudanças da sociedade. Logo, todos nós, direta ou indiretamente, interpretamos o texto constitucional.
                Essa noção tem sido muito prestigiada no Brasil, e podemos apontar-lhe algumas conseqüências relevantes: a) a realização de audiências públicas no Supremo Tribunal Federal, procedimento por meio do qual a Corte “abre-se” para ouvir o que a sociedade e os experts em determinada matéria pensam (por meio da intervenção da figura do amicus curiae, o “amigo da Corte”, um especialista que se habilita para esclarecer ao Tribunal questões técnicas); b) o reconhecimento de um poder do toda a sociedade de mudar o significado das normas constitucionais, sem mudança do texto, por meio do procedimento informal chamado de mutação constitucional (é o chamado poder constituinte difuso); c) a previsão de abertura do processo legislativo à participação social e popular, por meio da realização de audiências públicas, por exemplo.
                Porém, à parte essa teoria, pode-se classificar a interpretação quanto ao sujeito que a realiza: a) interpretação legislativa ou autêntica: ocorre quando o próprio legislador (no nosso caso, o constituinte, seja ele originário ou derivado) explica o conteúdo de uma norma; b) interpretação judicial: decorre da atividade do poder Judiciário – que, hoje em dia se reconhece, exerce uma atividade eminentemente criativa (principalmente na interpretação constitucional); não mais subsiste a ideia de Montesquieu de que o juiz seria apenas “a boca que pronuncia as palavras da lei”. Importante, então, conhecer a jurisprudência (conjunto das repetidas decisões de um tribunal sobre determinada matéria). Aliás, ressalte-se que muitas decisões judiciais do STF possuem força vinculante (ex.: decisão final de mérito em ADIn/ADC/ADPF; recurso extraordinário contra decisão em controle abstrato estadual; súmulas de efeitos vinculantes); c) interpretação doutrinária: é aquela feita pelos juristas, pelos entendidos em Direito. De suma importância para o estudo do Direito Constitucional.

4. MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

                Método é um conjunto de técnicas que devem ser seguidas para que se possa chegar a um determinado resultado. Com base nesse conceito, podemos afirmar que os métodos da interpretação constitucional são os diversos caminhos, os diversos conjuntos de técnicas que são propostos para que o intérprete possa chegar a um resultado seguro. São os caminhos hermenêuticos para que o intérprete possa fazer uma boa interpretação (ou seja, uma interpretação segura, consistente, constitucionalmente adequada).
                Esses métodos e postulados geralmente não se excluem, antes se complementam. Aliás, um bom exercício hermenêutico é fazer uma “prova dos nove”: testar mais de um método para saber se é possível chegar a um mesmo significado.

                4.1. Métodos tradicionais ou jurídico-clássicos
               
                Esses métodos foram sistematizados por Savigny para a interpretação das leis em geral, mas também são válidos (com algumas ressalvas) para a interpretação constitucional. De acordo com o que defende Ernst Forsthoff, são os métodos que bastam para interpretar a Constituição, pois esta não difere, na estrutura, de uma lei. A maioria da doutrina, porém, entende que esses métodos – embora úteis – não são suficientes para se interpretar a Constituição[4].
                São métodos jurídicos clássicos de interpretação os seguintes:

                4.1.1. Método da interpretação gramatical (ou literal)

                Cuida-se de apreender o significado da assertiva normativa, ao pé da letra, colhendo apenas o significado das palavras. Não é suficiente para a construção de uma interpretação adequada, mas é imprescindível para fixar os limites dos quais o intérprete não pode se afastar, sob pena de violentar o texto da norma. Ex.: o art. 20, IV, determina que são bens da União “as ilhas oceânicas e as costeiras, excluídas, destas, as que contenham a sede de Municípios”. Nesse caso, é preciso realizar uma interpretação gramatical para fixar que “destas” se refere a “as [ilhas] costeiras”[5].

                4.1.2. Método da interpretação lógico-sistemática

                Tem como pressuposto a visão da lei como um todo, um conjunto. Assim, não se pode interpretar uma disposição da lei sem ter em mente os demais dispositivos. Deve-se interpretar a lei em conjunto, e não aos pedaços.
                Ex.: de acordo com o art. 12, §3º, alguns cargos são privativos de brasileiros natos. Porém, só tendo lido o §2º do mesmo art. 12 é que se pode saber que esse rol de cargos privativos é exaustivo (não admite ampliação), salvo outra previsão também constitucional.

                4.1.3. Método da interpretação histórica

                Leva em conta a evolução do sistema normativo para fixar o conteúdo da norma. Por exemplo: a antiga redação do art. 12, §1º, da CF, previa que “aos portugueses (...) serão atribuídos os direitos inerentes aos brasileiros natos”; após a ECR n. 3/94, retirou-se a palavra “natos”, o que sugere, em uma interpretação histórica, que os direitos agora reconhecidos são os de brasileiro naturalizado.

                4.1.4. Método da interpretação teleológica

                Busca fixar o significado da norma de acordo com a finalidade (telos) que razoavelmente dela se espera. Luís Recaséns Siches dá o exemplo de uma norma alemã que proibia o acesso de cães aos vagões dos trens. Um homem tentou, então, embarcar com um urso, alegando que a norma proibia apenas os cães. Por meio de uma interpretação teleológica, porém, fixou-se que, se os cães eram proibidos, com muito mais razão deveria ser vedado acesso de ursos[6].

                4.2. Métodos específicos da interpretação constitucional

                São métodos que não se aplicam às normas jurídicas em geral, mas sim foram desenvolvidos
tendo em mente especificamente a interpretação da Constituição, com suas peculiaridades: a doutrina geralmente cita o método tópico-problemático; o método hermenêutico-concretizador; o normativo-estruturante; e o científico-espiritual[7].

                4.2.1. Método tópico-problemático

                Sistematizado por Theodor Viehweg, no livro Tópica e Jurisprudência[8], tal método se baseia no fato de que a interpretação é uma constante resolução de problemas. Isso deve, então, ser feito com base na argumentação, utilizando pontos de vista aceitos pela sociedade (topoi), de modo que a melhor  interpretação é aquela que consiga melhor convencer.
                Luis Recaséns Siches comenta o método tópico, destacando que:

               “El profesor alemán Theordor Viehweg, reivindicando la tópica e la dialéctica de Aristóteles, Cicerón e los jurisconsultos romanos, muestra que el pensamiento jurídico no puede ser sistemático, ni deductivo, sino que debe ser pensamiento sobre problemas, en torno a problemas”[9].

                Esse método, embora tenha seus méritos, é criticado por abrir demais a Constituição, aceitando qualquer significado, desde que haja uma boa argumentação. Vale, então, a ressalva de Inocêncio Mártires Coelho, para quem “processualizada, a lei fundamental apresenta um elevado déficit normativo, pois a pretexto de abertura (...) o que se faz é dissolver a normatividade constitucional na política e na interpretação[10].

                4.2.2. Método hermenêutico-concretizador

                Tem por base a ideia de que interpretar e aplicar o Direito são uma só tarefa; interpretar é utilizar uma norma geral para resolver um problema específico; é partir do geral e abstrato para o individual e concreto; é, pois, concretizar a norma. Assim, “aplicar o direito significa pensar, conjuntamente, o caso e a lei, de tal maneira que o direito propriamente dito se concretize[11].
                As duas características básicas desse método são: a) o reconhecimento das pré-compreensões do intérprete, das quais ele parte para concretizar a norma; b) a valorização do caso concreto, atuando o intérprete como um “mediador” entre a norma e o caso concreto, tendo por ambiente os valores sociais.
                Cabe, então, ao intérprete-concretizador, elaborar um constante “ir e vir” (círculo ou espiral hermenêutico) da norma ao fato e do fato à norma, para então concretizar a Constituição.

                4.2.3. Método científico-espiritual

                Elaborado por Rudolf Smend, essa metodologia parte do pressuposto de que a Constituição não se esgota na “letra seca”, mas contém também um espírito, um conjunto de valores que lhe são subjacentes.
                Cabe ao intérprete, pois, interpretar a Constituição como algo dinâmico, em constante modificação e tendo em vista os valores da sociedade, não se atendo apenas à “lei seca”, mas também ao espírito da Constituição.
                Esse método tem o inegável mérito de evidenciar a importância dos valores e do “olhar para a sociedade” para interpretar a Constituição.

                4.2.4. Método normativo-estruturante

                Esse método traz em si um debate sobre a estrutura da norma. Sabe-se que o texto constitucional nada mais é do que um conjunto de signos que, em si, nada significam. A norma é um significado – por isso se diz que só existe norma depois de haver uma interpretação, e que é o intérprete que constroi a norma.
                Com base nisso, Friedrich Müller enxergou uma diferença entre a norma (significado, resultado da interpretação) e o texto da norma (dispositivo normativo, o ponto de partida): o dispositivo é um dado;
a norma, algo construído pelo intérprete. É fundamental para o intérprete, antes de chegar à norma (significado), promover uma integração entre o programa normativo (texto da norma) e o âmbito normativo (o conjunto de fatos com os quais o texto da norma está “envolvido”).

5. PRINCÍPIOS (OU POSTULADOS) DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

                São regras básicas a serem observadas pelo intérprete para que possa bem alcançar a tarefa de interpretar as normas constitucionais sem, contudo, violentá-las. São os princípios que o intérprete deve seguir, para tentar extrair do texto da norma o significado constitucionalmente mais adequado. Esses princípios não se excluem; antes, complementam-se.

                5.1. Unidade da Constituição

                A Constituição é um todo uno, indivisível e harmônico; dessa forma deve ser entendida e interpretada. Deve o intérprete, então, analisar a Constituição como um sistema em que todas as normas estão interligadas. Por exemplo: o art. 61, § 1º, II, d, da CF, atribui ao Presidente da República a iniciativa privativa de leis sobre organização do Ministério Público da União. Porém, tal norma não pode ser interpretada como uma “ilha”. Não se interpreta o direito em tiras, por pedaços, como adverte Eros Grau[12]. É preciso – nesse exemplo que estamos expondo – atentar para o fato de que o art. 128, § 5º, também atribui ao Procurador-Geral da República a iniciativa de leis sobre o MPU. Logo, pode-se dizer que a iniciativa pode, nesse caso, ser exercida tanto pelo Presidente da República, quanto pelo Procurador-Geral da República.
                Duas consequências importantes advêm desse princípio: 1. não há verdadeiros conflitos entre normas constitucionais – essas contradições são apenas aparentes, cabendo ao intérprete harmonizar
os diversos dispositivos da Constituição; 2. não há hierarquia entre normas constitucionais: todas estão no mesmo patamar hierárquico, de modo que o Brasil não adota, nesse ponto, a teoria das normas constitucionais inconstitucionais de Otto Bachof (para quem algumas normas constitucionais originárias poderiam ser declaradas inconstitucionais quando em conflito com outras normas, também originárias, só que mais importantes).
                É por isso que se diz Assim, por exemplo, o STF aceita a declaração de inconstitucionalidade de norma constitucional oriunda do constituinte derivado, mas não de norma constitucional originária.

                5.2. Máxima efetividade

                As normas constitucionais, por serem mais abertas que as normas jurídicas em geral, comumente são passíveis de mais de uma interpretação. Deve-se, então, preferir a interpretação que mais valorize a eficácia e efetividade da Constituição.
                Esse princípio é muito importante na interpretação das normas programáticas e das normas definidoras de direitos fundamentais.
                Por exemplo:, o art. 5º, XI, da CF, determina que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”. Existem, então, duas interpretações possíveis: uma que dá ao vocábulo “casa” uma interpretação mais restrita (apenas local utilizado para moradia) e outra mais ampla (“casa” é qualquer compartimento habitado em que alguém exerce a privacidade). Deve-se preferir, então, a interpretação mais ampla, pois é a que mais efetividade dá ao direito fundamental previsto na CF.

                5.3. Força normativa da Constituição

                As normas constitucionais são, antes de mais nada, normas jurídicas. Por isso, possuem uma força obrigatória, a força de mudar os fatos – a força normativa, no dizer de Konrad Hesse.
                Desse modo, quando a norma constitucional (dever-ser) apontar uma realidade e os fatos (ser) mostrarem outra situação, deve sempre prevalecer a norma constitucional. No conflito entre a norma e os fatos, aquela (a norma) deve prevalecer.
                Não se trata de menosprezar a importância dos fatos sociais para a interpretação constitucional, mas de reconhecer que a norma tem uma pretensão de modificar os fatos que lhe sejam contrários.
                Por exemplo: o art. 5º, III, da CF, proíbe a tortura e o tratamento desumano ou degradante. Todavia, sabemos nós que existem ainda muitas dessas situações Brasil afora. Isso significa que norma constitucional “não serve” e deve ser deixada de lado? Não! Isso significa que devemos lutar para que os fatos sociais adaptem-se ao mandamento da norma constitucional. A força está com a norma (força normativa, mandamental).
                Trata-se de valorizar a Constituição e lutar pelo respeito a ela: é o que Konrad Hesse denomina de vontade de Constituição, que deve subjugar a vontade de abusar do poder (vontade de poder)[13].

                5.4. Harmonização (=concordância prática=cedência recíproca=ponderação)

                Como os conflitos entre normas constitucionais são apenas aparentes, cabe ao intérprete harmonizar as normas que sejam aparentemente conflitantes. Isso se faz com base na ponderação de valores, percebendo que, no conflito entre duas normas constitucionais, qualquer delas pode prevalecer, o que só se saberá de acordo com o caso concreto.
                Apesar disso, deve-se sempre buscar a máxima efetividade dos valores em confronto. Esse princípio possui especial relevância no estudo dos conflitos entre direitos fundamentais.
                Por exemplo: no conflito entre o direito à vida e a liberdade de religião, tanto a vida pode prevalecer, quanto pode a liberdade de religião “ganhar” esse conflito aparente (cedência recíproca) – isso só se resolverá de acordo com o caso concreto. Mas, em qualquer caso, afirmar que “a vida ganha” não significa retirar a validade da liberdade de religião.
                Outro exemplo: no conflito entre o direito à intimidade e a liberdade de imprensa, qual deles deve prevalecer? Não há uma resposta pronta, a priori, pois tudo depende do caso concreto. Dependendo da situação concreta, pode prevalecer o direito à intimidade (caso se trate de uma pessoa que foi filmada, dentro de sua casa, sem autorização) ou o direito à liberdade de imprensa – caso uma modelo (exemplo hipotético) seja filmada mantendo relações sexuais com o namorado em plena praia, é claro que, nesse caso deverá prevalecer a liberdade de imprensa. Qualquer das duas decisões, contudo, não significa que o direito que não prevaleceu naquele caso não seja válido: apenas cedeu diante de outro direito que, naquele caso, se mostrava mais importante.

                5.5. Efeito integrador

                Deve o intérprete preferir a interpretação que causa maior estabilidade social, maior integração política e social. Entre uma interpretação que causará desordem e uma que aumentará a integração social, deve-se, se possível, preferir a segunda. Ou, na definição de Canotilho, sempre cobrada em provas, pode-se dizer que, na resolução de problemas jurídico-constitucionais, o intérprete, no eu labor hermenêutico, deve buscar a interpretação que gere o reforça da unidade política[14].
                Por exemplo: a Constituição não aborda a questão da punição pelos crimes cometidos durante a ditadura militar e que foram objeto da lei de anistia (os arts. 8º e 9º do ADCT tratam apenas da anistia em matéria administrativa).
                Abrem-se, então, duas possibilidades: a) entender que a CF recepcionou a lei de anistia; ou b) “ressuscitar” a discussão sobre os crimes cometidos durante a ditadura. Obviamente, a primeira opção é mais adequada, pois a segunda causaria conflitos sociais grandiosos – e o fim do Direito é a resolução dos conflitos (e não a criação de outros).
                Foi isso que decidiu o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADPF 153/DF, em que a OAB questionava a compatibilidade da lei de anistia com a atual Constituição:

                “LEI N. 6.683/79, A CHAMADA "LEI DE ANISTIA". ARTIGO 5º, CAPUT, III E XXXIII DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL; PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO E PRINCÍPIO REPUBLICANO: NÃO VIOLAÇÃO. CIRCUNSTÂNCIAS HISTÓRICAS. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E TIRANIA DOS VALORES. INTERPRETAÇÃO DO DIREITO E DISTINÇÃO ENTRE TEXTO NORMATIVO E NORMA JURÍDICA. CRIMES CONEXOS DEFINIDOS PELA LEI N. 6.683/79. CARÁTER BILATERAL DA ANISTIA, AMPLA E GERAL. JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA SUCESSÃO DAS FREQUENTES ANISTIAS CONCEDIDAS, NO BRASIL, DESDE A REPÚBLICA. INTERPRETAÇÃO DO DIREITO E LEIS-MEDIDA. CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA A TORTURA E OUTROS TRATAMENTOS OU PENAS CRUÉIS, DESUMANOS OU DEGRADANTES E LEI N. 9.455, DE 7 DE ABRIL DE 1997, QUE DEFINE O CRIME DE TORTURA. ARTIGO 5º, XLIII DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. INTERPRETAÇÃO E REVISÃO DA LEI DA ANISTIA. EMENDA CONSTITUCIONAL N. 26, DE 27 DE NOVEMBRO DE 1985, PODER CONSTITUINTE E "AUTO-ANISTIA". INTEGRAÇÃO DA ANISTIA DA LEI DE 1979 NA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL. ACESSO A DOCUMENTOS HISTÓRICOS COMO FORMA DE EXERCÍCIO DO DIREITO FUNDAMENTAL À VERDADE.
                1. Texto normativo e norma jurídica, dimensão textual e dimensão normativa do fenômeno jurídico. O intérprete produz a norma a partir dos textos e da realidade. A interpretação do direito tem caráter constitutivo e consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos normativos e da realidade, de normas jurídicas a serem aplicadas à solução de determinado caso, solução operada mediante a definição de uma norma de decisão. A interpretação/aplicação do direito opera a sua inserção na realidade; realiza a mediação entre o caráter geral do texto normativo e sua aplicação particular; em outros termos, ainda: opera a sua inserção no mundo da vida.
                2. O argumento descolado da dignidade da pessoa humana para afirmar a invalidade da conexão criminal que aproveitaria aos agentes políticos que praticaram crimes comuns contra opositores políticos, presos ou não, durante o regime militar, não prospera.
                (...) 4. A lei estendeu a conexão aos crimes praticados pelos agentes do Estado contra os que lutavam contra o Estado de exceção; daí o caráter bilateral da anistia, ampla e geral, que somente não foi irrestrita porque não abrangia os já condenados --- e com sentença transitada em julgado, qual o Supremo assentou --- pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.
                5. O significado válido dos textos é variável no tempo e no espaço, histórica e culturalmente. A interpretação do direito não é mera dedução dele, mas sim processo de contínua adaptação de seus textos normativos à realidade e seus conflitos. Mas essa afirmação aplica-se exclusivamente à interpretação das leis dotadas de generalidade e abstração, leis que constituem preceito primário, no sentido de que se impõem por força própria, autônoma. Não àquelas, designadas leis-medida (Massnahmegesetze), que disciplinam diretamente determinados interesses, mostrando-se imediatas e concretas, e consubstanciam, em si mesmas, um ato administrativo especial. No caso das leis-medida interpreta-se, em conjunto com o seu texto, a realidade no e do momento histórico no qual ela foi editada, não a realidade atual. É a realidade histórico-social da migração da ditadura para a democracia política, da transição conciliada de 1979, que há de ser ponderada para que possamos discernir o significado da expressão crimes conexos na Lei n. 6.683. É da anistia de então que estamos a cogitar, não da anistia tal e qual uns e outros hoje a concebem, senão qual foi na época conquistada. Exatamente aquela na qual, como afirma inicial, "se procurou" [sic] estender a anistia criminal de natureza política aos agentes do Estado encarregados da repressão. A chamada Lei da anistia veicula uma decisão política assumida naquele momento --- o momento da transição conciliada de 1979. A Lei n. 6.683 é uma lei-medida, não uma regra para o futuro, dotada de abstração e generalidade. Há de ser interpretada a partir da realidade no momento em que foi conquistada.
                6. A Lei n. 6.683/79 precede a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes --- adotada pela Assembléia Geral em 10 de dezembro de 1984, vigorando desde 26 de junho de 1987 --- e a Lei n. 9.455, de 7 de abril de 1997, que define o crime de tortura; e o preceito veiculado pelo artigo 5º, XLIII da Constituição --- que declara insuscetíveis de graça e anistia a prática da tortura, entre outros crimes --- não alcança, por impossibilidade lógica, anistias anteriormente a sua vigência consumadas. A Constituição não afeta leis-medida que a tenham precedido.
                7. No Estado democrático de direito o Poder Judiciário não está autorizado a alterar, a dar outra redação, diversa da nele contemplada, a texto normativo. Pode, a partir dele, produzir distintas normas. Mas nem mesmo o Supremo Tribunal Federal está autorizado a rescrever leis de anistia.
                8. Revisão de lei de anistia, se mudanças do tempo e da sociedade a impuserem, haverá --- ou não --- de ser feita pelo Poder Legislativo, não pelo Poder Judiciário.
                9. A anistia da lei de 1979 foi reafirmada, no texto da EC 26/85, pelo Poder Constituinte da Constituição de 1988. Daí não ter sentido questionar-se se a anistia, tal como definida pela lei, foi ou não recebida pela Constituição de 1988; a nova Constituição a [re]instaurou em seu ato originário. A Emenda Constitucional n. 26/85 inaugura uma nova ordem constitucional, consubstanciando a ruptura da ordem constitucional que decaiu plenamente no advento da Constituição de 5 de outubro de 1988; consubstancia, nesse sentido, a revolução branca que a esta confere legitimidade. A reafirmação da anistia da lei de 1979 está integrada na nova ordem, compõe-se na origem da nova norma fundamental. De todo modo, se não tivermos o preceito da lei de 1979 como ab-rogado pela nova ordem constitucional, estará a coexistir com o § 1º do artigo 4º da EC 26/85, existirá a par dele [dicção do § 2º do artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil]. O debate a esse respeito seria, todavia, despiciendo. A uma por que foi mera lei-medida, dotada de efeitos concretos, já exauridos; é lei apenas em sentido formal, não o sendo, contudo, em sentido material. A duas por que o texto de hierarquia constitucional prevalece sobre o infraconstitucional quando ambos coexistam. Afirmada a integração da anistia de 1979 na nova ordem constitucional, sua adequação à Constituição de 1988 resulta inquestionável. A nova ordem compreende não apenas o texto da Constituição nova, mas também a norma-origem. No bojo dessa totalidade --- totalidade que o novo sistema normativo é --- tem-se que "[é] concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou conexos" praticados no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Não se pode divisar antinomia de qualquer grandeza entre o preceito veiculado pelo § 1º do artigo 4º da EC 26/85 e a Constituição de 1988”[15].

                5.6. Conformidade funcional (correção funcional)

                O intérprete deve interpretar a Constituição de modo a evitar conflitos entre os poderes constituídos; deve buscar realizar o equilíbrio entre os poderes, nunca a desarmonia institucional.
                Assim, o STF não pode “aproveitar-se” do poder que detém para dominar os demais poderes, nem pode aceitar a dominação de um por outro. Ou seja, na tarefa de interpretar a Constituição, deve-se respeitar o equilíbrio entre os poderes.
                Aliás, Canotilho adverte que o órgão judicante “não pode chegar a um resultado que subverta ou perturbe o esquema organizatório funcional constitucionalmente estabelecido”. A correção funcional, ou conformidade funcional, configura um paradigma a ser observado pelo Judiciário, “nas suas relações com o legislador e o governo[16].
                Como se percebe, esse princípio tem por base as lições de Montesquieu, e sua teoria da divisão dos poderes[17].
                Uma aplicação prática desse princípio se dá no controle de constitucionalidade das leis: ao interpretar as leis e a Constituição, o intérprete (principalmente o intérprete máximo, ou seja, o STF) deve respeitar as decisões políticas do legislador (mesmo que delas discorde), evitando declarar inconstitucionais as normas por mera discordância política (é o que os americanos denomina de self-restraint, ou autocontenção); mas, por outro lado, também não pode compactuar com o eventual desrespeito à Constituição, não se privando de apontar eventuais inconstitucionalidades, sob pena de permitir ao Legislativo suplantar os demais poderes.
               
                5.7. Razoabilidade e proporcionalidade

                Tais princípios (que são tomados como sinônimos pela jurisprudência do STF, embora, particularmente, discordemos dessa tese) determinam que a interpretação constitucional deve ser equilibrada, racional, não pode ter por conclusões significados absurdos.
                Ademais, a restrição a direitos fundamentais deve atender aos parâmetros de adequação entre meios e fins, necessidade da restrição (exigibilidade) e proporcionalidade em sentido estrito. Na célebre
síntese de Georg Jellinek, significa que “não se abatem pardais com tiros de canhão”. Dessa forma, o intérprete deve afastar interpretações desequilibradas, e deve interpretar as restrições aos direitos fundamentais sempre de maneira a restringi-los o mínimo possível[18].
                O Supremo Tribunal Federal, aplicando esse princípio na interpretação das leis restritivas de direitos fundamentais, já declarou inconstitucional Lei do Estado do Paraná que exigia dos revendedores de gás de cozinha (GLP) que dispusessem de balanças industriais para pesar os botijões na presença dos consumidores[19].

                5.8. Interpretação conforme a Constituição

                Sempre que a lei apresentar mais de um significado possível, deve-se preferir aquele que é constitucional, dando à norma uma interpretação conforme a Constituição. Tal princípio é um mandamento de aproveitamento da lei, tentando “salvá-la”, quando possível, da declaração de inconstitucionalidade.
                A interpretação conforme a Constituição é uma técnica de controle de constitucionalidade – ou, antes, da própria interpretação constitucional – consistente em, ao fixar os significados atribuíveis a um determinado texto, afastar aqueles incompatíveis com as normas constitucionais. Trata-se de técnica, portanto, intrinsecamente ligada à moderna ideia de abertura do texto constitucional e de diferenciação entre norma (significado) e texto da norma (significante)[20].
                A interpretação conforme a Constituição tem o claro objetivo de “salvar” da inconstitucionalidade uma norma, cujas disposições possam ser com a norma suprema compatibilizadas. Promove-se uma seleção, dentre os possíveis significados atribuídos a um dispositivo, dos que cumprem as exigências para ingresso no sistema constitucional, de maneira a construir uma norma constitucional (em sentido adjetivo, isto é, uma norma compatível com a Constituição).
                É, como dissemos, uma técnica de interpretação constitucional, antes mesmo de integrar o hoje bastante amplo repertório instrumental do controle de constitucionalidade. Justamente por isso – e ao contrário da declaração de nulidade parcial sem redução do texto – não se submete à regra de reserva de plenário (full bench) prevista no art. 97 da CF para o controle difuso[21]. Ademais, convola-se em um verdadeiro dever do intérprete, servo constante e primeiro da Constituição.
                Sobre o tema, Gilmar Mendes afirma que “Em favor da admissibilidade da interpretação conforme a Constituição milita também a presunção de constitucionalidade da lei, fundada na ideia de que o legislador não poderia ter pretendido votar lei inconstitucional[22].

                5.9. Presunção de constitucionalidade das leis

                De acordo com esse princípio hermenêutico, as leis devem ser consideradas constitucionais, até que se prove o contrário, isto é, até que sejam declaradas inconstitucionais pelo Poder Judiciário, como ensina o prof. Luís Roberto Barroso[23].

6. LIMITES DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

                Na teoria hermenêutica de Kelsen, a interpretação é um ato de vontade, e não de conhecimento. O intérprete escolhe, dentre as várias possibilidades de significado, aquela que considere mais adequada. Dito em termos “modernos”: o intérprete “constrói” a norma a partir do enunciado (=texto).
                Todavia, ao intérprete não é dado escolher significados que não estejam abarcados pela moldura da norma. Interpretar não pode significar violentar a norma[24]. Ao contrário, a hermenêutica deve propor critérios para, de um lado, permitir o pleno desenvolvimento da atividade criativa e volitiva do intérprete, mas, de outra parte, impondo-lhe limites.
                Realmente, como sustenta Grau, o intérprete “não é um criador ex nihilo; ele produz a norma, mas não no sentido de fabricá-la, porém no de reproduzi-la. (...) [a norma] já se encontra, potencialmente, no invólucro do texto normativo[25].
                Assim, se reconhecêssemos ao intérprete liberdade absoluta, já passaríamos da seara da interpretação para a legislação; transformaríamos o poder do intérprete em um poder sem limites – o que não é Direito, mas sua frontal negação.
                No mesmo sentido, Inocêncio Mártires Coelho afirma:

            “a idéia de se estabelecerem parâmetros objetivos para controlar e racionalizar a interpretação deriva imediatamente do princípio da segurança jurídica, que estaria de todo comprometida se os aplicadores do direito (…) pudessem atribuir-lhes qualquer significado, à revelia dos cânones hermenêuticos”[26].

                É correto afirma, portanto, que o intérprete não se pode converter em legislador. Embora seja quase um truísmo dizer que é o intérprete quem cria a norma, esse postulado não pode indicar a irrestrita liberdade hermenêutica.
                Konrad Hesse chega a afirmar que:

“[a] Interpretação está vinculada a algo estabelecido. Por isso, os limites da interpretação constitucional estão lá onde (...) terminam as possibilidades de uma compreensão conveniente do texto da norma ou onde uma resolução iria entrar em contradição unívoca com o texto da norma”[27].

                Com efeito, interpretar significa decodificar uma mensagem enviada por outrem (no caso constitucional, pelo poder constituinte). Assim, não pode o intérprete desrespeitar certos limites. O grande problema é definir quais são esses limites.
                Em primeiro lugar, o texto da norma surge como limite insuperável da atividade interpretativa. Costuma-se afirmar, com inteira razão, que, mesmo para dizer que uma norma é clara, é preciso interpretá-la. Porém, quando se chega à conclusão de que o sentido possível para a norma é apenas um, esse significado não pode ser afastado pelo intérprete – a não ser que a norma não seja aplicável ou não seja válida.
                Em outras palavras: em termos de hermenêutica, quando o significado da norma for unívoco, não cabe ao intérprete “corrigi-lo” ou “adequá-lo”, ainda que seja injusto o resultado. Será possível, porém, considerar inconstitucional a norma objeto da interpretação, em virtude de violar algum princípio constitucional. Só que, aqui, já não estamos no âmbito da interpretação, mas sim no terreno da validade das normas. E, como os atos normativos gozam de presunção de constitucionalidade, caberá ao aplicador desincumbir-se do grave dever de provar que a norma é inválida.
                Recorremos, uma vez mais, à lição de Konrad Hesse:

            “Mesmo que um problema (...) não se deixe resolver adequadamente por concretização, o juiz, que está vinculado à Constituição, não tem livre escolha dos topoi.
            Esse limite é pressuposto da função racionalizadora, estabilizadora e limitadora do poder da Constituição. Ele inclui a possibilidade de uma mutação constitucional por interpretação; ele exclui um rompimento constitucional – o desvio do texto em cada caso particular”[28].
               
                Nesse sentido, é possível resgatar o vetusto brocardo “in claris cessat interpretatio”. Como já se disse, tal princípio hermenêutico é hoje rechaçado, sob a alegação de que a interpretação é sempre necessária, mesmo para determinar que a norma é clara (na verdade, até mesmo para determinar a própria norma). Todavia, é possível conferir-lhe uma interpretação um pouco mais útil: a de que, quando a norma admitir apenas um significado, o intérprete estará vinculado a esse sentido. Afinal, não se diz que não há interpretação quando a norma é clara, mas sim que ela cessa (termina).
                Nesse contexto – reafirme-se –, o texto da norma é o limite insuperável da atividade interpretativa[29]. Idêntica é a posição de Celso Ribeiro Bastos, para quem “a letra da lei constitui sempre ponto de referência obrigatória para a interpretação de qualquer norma”[30].
                Sobre esse aspecto da hermenêutica, Inocêncio Mártires Coelho noticia que “Umberto Eco rejeita a idéia de que todas as interpretações sejam igualmente válidas, pois algumas delas se mostram indubitavelmente erradas ou clamorosamente inaceitáveis”[31].
                É claro que há uma dificuldade ao impor limites aos limites da interpretação: o que é o texto constitucional? Logicamente, não há textos que falem por si, logo, como já dissemos, mesmo para a determinação do que “diz” o texto, é necessário algum tipo de interpretação. Todavia, como defende Gadamer, o intérprete deve assumir um compromisso de “honestidade hermenêutica”, ao determinar qual o significado do texto, limite de sua atividade.
                E, ainda mais, há que se lembrar a advertência de André Ramos Tavares, para quem

            “todo vocábulo é possuidor de um significado linguístico próprio e específico (caso contrário não estaria apto a alcançar um mínimo necessário para a comunicação, que é sua própria razão de ser). Este deve ser extraído numa operação preliminar, pelo intérprete do Direito”[32].     


[1]     FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2001, p. 133.
[2]     HÄBERLE, Peter. A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição. Contribuição para uma análise pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997.
[3]     Mesmo porque – adverte Chaïm Perelman – “se o Direito é encarado sob seu aspecto teleológico, ou seja, como um meio visando a um fim que deve ser realizado no seio de uma sociedade em mutação, ele não pode ser indiferente às conseqüências de sua aplicação”. PERELMAN, Chaïm. Ética e direito. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 422.
[4]     Cf. COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003, p. 55.
[5]     Cf. CAVALCANTE FILHO, João Trindade. Regime Constitucional de Propriedade das Ilhas Oceânicas e Costeiras. In: Boletim Científico da Escola Superior do Ministério Público da União, Brasília, a. 7 – n. 27, p. 185-200 – abr./jun. 2008.
[6]     Para um estudo mais detalhado da lógica do razoável defendida pelo autor mexicano, confira-se: SICHES, Luis Recaséns. La Naturaleza del Pensamiento Jurídico. In: Revista de Informação Legislativa, Brasília, outubro/dezembro de 1972, pp. 284 e seguintes.
[7]     A sistematização é trazida por Canotilho. Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003, pp. 1320 e ss.
[8]     VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Tradução de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008.
[9]     SICHES, Luis Recaséns. La Naturaleza del Pensamiento Jurídico. In: Revista de Informação Legislativa, Brasília, outubro/dezembro de 1972, p. 285.
[10]    COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação Constitucional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003, p. 115.
[11]    Idem, ibidem, p. 116.
[12]    GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 42.
[13]    HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991, p. 20.
[14]    CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. Cit., p. 1220.
[15]    STF, Pleno, ADPF 153/DF, Relator Ministro Eros Grau, DJe de 05.08.2010.
[16]    CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. Cit., p. 1224.
[17]    MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat, Barão de la Brède e de. O Espírito das Leis. Tradução de Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 168.
[18]    Confira maiores detalhes sobre esse princípio no capítulo relativo à Teoria Geral dos Direitos Fundamentais.
[19]    STF, Pleno, ADIn 855/PR, Relator Ministro Octavio Galotti, DJ de 26.03.2009.
[20]    Porém, como oportunamente nos lembra Inocêncio Mártires Coelho, o Supremo Tribunal Federal já há muito tempo parece adotar tal posição, como é exemplo claro a Súmula n. 400 daquela Corte (editada ainda antes da Constituição de 1988), segundo a qual “Não cabe recurso extraordinário quando a interpretação dada à lei federal seja razoável, ainda que não seja a melhor”.
[21]    Gilmar Mendes adverte que “a interpretação conforme a Constituição levava sempre, no direito  brasileiro, à declaração de constitucionalidade da lei. Porém, como já se disse, há hipóteses em que esse tipo de interpretação pode levar a uma declaração de inconstitucionalidade sem redução do texto.”.
[22]    MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2005.
[23]    BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2005.
[24]    DIMOULIS, Dimitri. Op. Cit., p. 220.
[25]    GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, p. 39. São Paulo: Malheiros, 2009.
[26]    COELHO, Inocêncio Mártires. Op. Cit., p. 143.
[27]    HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha, p. 71. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003.
[28]    HESSE, Konrad. Op. Cit., p. 70.
[29]    HESSE, Konrad. Op. Cit., p. 71.
[30]    BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional, p. 110. São Paulo: IBDC, 1999.
[31]    COELHO, Inocêncio Mártires. Op. Cit, p. 144.
[32]    TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, p. 104. São Paulo: Saraiva, 2010.